Universidades e empresa do interior paulista desenvolvem braço mecânico para telescópios que serão instalados no maior observatório de raios gama
O braço metálico responsável por dar sustentação e posicionar a câmera de 2 toneladas dos telescópios de médio porte do Cherenkov Telescope Array (CTA), iniciativa internacional que pretende construir o maior observatório de raios gama até 2020, será fabricado de acordo com as especificações de um protótipo dessa estrutura desenvolvido no estado de São Paulo. Concebido ao longo dos últimos quatro anos pela equipe de Luiz Vitor de Souza Filho, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), em parceria com a Universidade Federal do ABC (UFABC) e uma empresa de São José dos Campos, a Orbital Engenharia, o suporte mecânico made in Brazil bateu um projeto rival francês, que também criou uma estrutura semelhante, e foi escolhido para equipar 40 telescópios que devem ser montados e operados pelo observatório. “Nosso protótipo cumpriu todas as exigências pedidas”, afirma Souza Filho, que contou com dois financiamentos da FAPESP para o desenho e construção do braço metálico.
Composta pela junção de 84 peças distintas, a estrutura, de formato tubular, é feita de aço-carbono, pesa 4,5 toneladas e tem 16 metros (m) de altura. Em novembro do ano passado, foi enviada desmontada à Alemanha para ser instalada nas demais partes do protótipo do telescópio de 12 m de diâmetro e submetida a testes. O suporte se mostrou extremamente estável, como é exigido de um componente cuja principal função é conectar a base onde está o espelho à câmera do telescópio e manter essas duas partes no alinhamento correto. “Ele funciona bem”, diz o físico de partículas Stefan Schlenstedt, do Deutsches Elektronen-Synchrotron (Desy), centro de pesquisa nos arredores de Berlim, responsável pelo desenvolvimento dos telescópios de médio porte do CTA. “Esperamos que o Brasil possa bancar ao menos 25 dessas estruturas.” As demais, mesmo se construídas fora do país ou com verba de outros parceiros do CTA, deverão ser idênticas ao desenho e ter a mesma qualidade do protótipo feito no interior paulista, segundo Schlenstedt. O custo de fabricação do braço mecânico criado pelo IFSC e a Orbital, empresa dedicada essencialmente à construção de painéis solares para satélites, é de cerca de R$ 500 mil por unidade. O projeto de desenvolvimento do protótipo da estrutura de apoio da câmera do telescópio foi objeto de um pedido de patente por parte de seus criadores.
Com um orçamento total estimado em € 270 milhões, o CTA é um consórcio internacional formado por 1.200 cientistas e engenheiros de 170 instituições de pesquisa e 31 países. Seu objetivo é instalar cerca de 120 telescópios do tipo Cherenkov, ideal para realizar observações em raios gama dos fenômenos mais energéticos do Universo, como a colisão de partículas de matéria escura, a natureza de eventos capazes de acelerar os raios cósmicos (como o choque de estrelas e a ação de buracos negros supermassivos) e ocorrências que violam a constância da velocidade da luz. Os telescópios serão de três tamanhos: os maiores terão 24 m, os de porte médio chegarão a 12 m e os menores medirão 4 m. Aproximadamente 70 telescópios serão do tamanho pequeno e 40, do tipo intermediário. Os grandões provavelmente não chegarão a uma dezena de unidades.
Cada tipo de telescópio observa eventos em diferentes faixas de energia, entre poucas dezenas de gigaelétron-volt (GeV) e 100 teraelétron-volt (TeV), e apresenta um campo de visão distinto. “As maiores energias são captadas pelos pequenos telescópios e as menores pelos grandes”, explica Souza Filho. Quando estiverem 100% operacionais, os instrumentos de observação do CTA deverão aumentar em 10 vezes a capacidade dos físicos e astrofísicos de registrar eventos de alta energia nas frequências de raio gama, argumentam os apoiadores do consórcio.
Sítios em Atacama e La Palma
Os telescópios do CTA serão distribuídos em dois sítios astronômicos, um no hemisfério Sul e outro no Norte. Em julho deste ano, o consórcio internacional decidiu os prováveis lugares onde eles serão montados. Um conjunto ou array de 100 telescópios (dos quais 25 de porte médio) será instalado em Paranal, no deserto de Atacama, no Chile, onde funciona uma das unidades do Observatório Europeu do Sul (ESO). Um segundo set, menor, com 20 telescópios (15 deles de tamanho intermediário), será erigido no Observatório del Roque de los Muchachos, em La Palma, um concorrido ponto de observações astronômicas nas Ilhas Canárias, na Espanha, situado a 2.400 metros acima do nível do mar.
Quem olha a grande estrutura tubular não se impressiona com sua aparência simples. Um leigo diria que ela parece ser formada pela junção de dois tripés gigantes dotados de algumas singularidades. Em sua parte inferior, é composta por seis pés, quatro grossos e dois finos, que se encaixam no painel onde fica o espelho do telescópio. Na porção superior, 10 pontos de apoio, quatro principais e seis auxiliares, fixam-se na câmera ou no suporte da câmera. “Não se trata de uma estrutura convencional, fácil de ser projetada e fabricada”, explica o engenheiro mecânico Celio Costa Vaz, presidente da Orbital, que participou diretamente do desenvolvimento do protótipo. “Ela tinha de preencher uma série de pré-requisitos específicos.”
A mais draconiana das exigências dizia respeito à estabilidade e à precisão do braço mecânico depois de ser instalado no telescópio. A estrutura tinha de suportar as 2 toneladas da câmera sem deformar mais do que 19 milímetros (mm), resistir à neve e aguentar ventos de até 200 quilômetros por hora. Com o telescópio em funcionamento, sua vibração não podia ultrapassar 3 mm. “Em 50 segundos, o telescópio gira para qualquer posição e a estrutura de suporte da câmera tem de se manter estável”, comenta Ronald Cintra Shellard, pesquisador da área de física experimental de altas energias do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, que representa o Brasil no conselho financeiro do CTA.
Uma estrutura fechada, sólida, seria mais fácil de ser projetada, mas limitaria o campo de visão do espelho do telescópio. Isso fez com que os pesquisadores da USP e os engenheiros da Orbital optassem por criar um braço mecânico tubular, vazado. “Dessa forma, a sombra gerada pela estrutura afeta menos de 10% da área do espelho”, diz o físico Marcelo Leigui da UFABC, outro pesquisador envolvido no projeto.
Plug and play
Outras exigências menores também guiaram o trabalho de concepção e fabricação do braço mecânico. Os telescópios do CTA serão instalados em dois sítios de acesso relativamente difícil. Nesse contexto, a estrutura de sustentação da câmera precisava ser de fácil transporte e montagem, prescindir de manutenção constante e apresentar uma vida útil de ao menos duas décadas. “Por isso criamos uma estrutura do tipo plug and play”, diz, em tom de brincadeira, Vaz, da Orbital. As partes do suporte tubular são montadas com o emprego de 584 parafusos. As peças de aço-carbono foram galvanizadas a quente por imersão, técnica que garante a proteção até das faces internas dos tubos. Se o cronograma inicial for mantido, o protótipo de braço mecânico para telescópios de 12 m desenvolvido no eixo São Carlos-São José dos Campos será mandado provavelmente no segundo semestre de 2016 para o sítio austral do CTA, no deserto de Atacama.
Segundo o físico Souza Filho, do IFSC, não foi fácil encontrar no Brasil um parceiro privado disposto a participar do processo de criação do braço mecânico. “Além da Orbital, outras empresas têm capacidade técnica para conceber um projeto com essas características”, afirma o pesquisador da USP de São Carlos. “Mas a maioria delas não tem como abrir espaço em sua linha de produção, voltada à fabricação de produtos comerciais, para investir no desenvolvimento de uma estrutura destinada a um fim muito específico.” Em seus contatos com firmas de engenharia, Souza Filho conta que conheceu uma empresa que, como a Orbital, teria todas as condições de conceber e construir o projeto de braço mecânico para o telescópio do CTA. Só havia um problema: sua linha de produção é praticamente toda monopolizada pela fabricação de antenas parabólicas, um mercado com boa demanda no país.
Além de ter desenhado e fabricado o protótipo de braço mecânico que deverá equipar os telescópios de 12 m do CTA, o Brasil também colabora nos projetos dos telescópios de pequeno e grande porte do futuro observatório de raios gama. Pesquisadores do CBPF e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) trabalham no desenvolvimento e construção das placas de interface dos dispositivos mecânicos que fazem o alinhamento dos espelhos dos telescópios de 24 m. A astrofísica Elisabete de Gouveia Dal Pino, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, coordena a atuação nacional no Astri Mini-Array, iniciativa que prevê a instalação de nove telescópios de 4 m no sítio do CTA em Paranal, no Chile, entre 2016 e 2017. Ao custo de cerca de € 3 milhões, a FAPESP banca a construção na Itália de três telescópios pequenos destinados a esse primeiro array do CTA, baseados em um protótipo concebido pelo Instituto Nacional de Astrofísica da Itália, e a participação de engenheiros brasileiros na iniciativa.
Projetos
1. Design e construção do protótipo do Cherenkov Telescope Array Observatory (n° 2010/19514-6); Modalidade: Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável: Luiz Vitor de Souza Filho (IFSC-USP); Investimento: R$ 128.568,00.
2. Desenvolvimento e construção de protótipo da estrutura dos telescópios do CTA (n° 2012/22540-4); Modalidade: Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável: Luiz Vitor de Souza Filho (IFSC-USP); Investimento: R$ 406.449,00.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.