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Em outras palavras, o calor pode fluir espontaneamente do corpo frio para o quente sem a necessidade de se investir energia no processo, como ocorre em um refrigerador comum. Um artigo com a descrição do experimento e considerações teóricas acaba de ser publicado na Nature Communications.

O primeiro autor do artigo, Kaonan Micadei, doutorou-se na UFABC sob orientação do professor Roberto Serra e, agora, faz seu pós-doutorado na Alemanha. Serra, que também assina o artigo, contou com apoio da FAPESP por meio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica. Além disso, a pesquisa teve dois auxílios concedidos a outro coautor do artigo, Gabriel Teixeira Landi, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).

“Podemos pensar que correlações representam informações compartilhadas entre diferentes sistemas. No mundo macroscópico, descrito pela Física clássica, o aporte de energia externa pode inverter o sentido do fluxo de calor de um sistema, fazendo-o escoar do frio para o quente. É o que ocorre em um refrigerador comum, por exemplo”, disse Serra à Agência FAPESP.

“É possível dizer que, em nosso experimento nanoscópico, as correlações quânticas produziram um efeito análogo ao da energia. O sentido do fluxo foi invertido, sem que isso tenha constituído uma violação da segunda lei da termodinâmica. Ao contrário, incorporando elementos da teoria da informação na descrição do transporte de calor, encontramos uma forma generalizada da segunda lei, desvendando o papel das correlações quânticas no processo”, disse. 

O experimento foi realizado com uma amostra de moléculas de clorofórmio (um átomo de hidrogênio, um de carbono e três de cloro) marcada com o isótopo 13 do carbono. Essa amostra foi diluída em solução e estudada por meio de um equipamento de ressonância magnética nuclear, similar aos empregados em hospitais para exames de imagem, mas com campo magnético muito mais intenso.

“Investigamos mudanças na temperatura dos spins dos núcleos de hidrogênio e de carbono. Os átomos de cloro não desempenharam papel relevante no experimento. Usando pulsos de radiofrequência, colocamos os spins de cada um dos núcleos de hidrogênio e de carbono em temperaturas diferentes, um mais frio, outro mais quente. As diferenças de temperatura foram muito pequenas, da ordem de dezenas de bilionésimos de kelvin. Mas as técnicas modernas possibilitam manipular e medir sistemas quânticos com extrema precisão. Nesse caso, o que se mediu foram oscilações de radiofrequência produzidas pelos núcleos atômicos”, disse Serra.

Os pesquisadores exploraram duas situações: uma em que os dois núcleos (hidrogênio e carbono) iniciavam o processo descorrelacionados e outra em que ambos estavam correlacionados de forma quântica.

“No primeiro caso, dos núcleos descorrelacionados, observamos o calor fluindo no sentido usual, do quente para o frio, até os dois núcleos ficarem na mesma temperatura. No segundo caso, com os dois núcleos inicialmente correlacionados, observamos o calor fluindo no sentido inverso, do frio para o quente. O efeito durou alguns milésimos de segundo até que a correlação inicial fosse consumida”, disse.

O mais interessante nesse resultado é que ele possibilita pensar em um processo de refrigeração quântico no qual o aporte de energia externa (que é o recurso empregado nas geladeiras e aparelhos de ar condicionado para esfriar um determinado ambiente) seja substituído por correlações, isto é, por troca de informações entre objetos.

Demônio de Maxwell

A ideia de que informação poderia ser usada para inverter o sentido do fluxo de calor – vale dizer, para promover a diminuição local da entropia – surgiu na Física clássica do fim do século 19, em uma época em que nem existia uma teoria da informação.

Isso ocorreu em um experimento mental proposto por James Clerk Maxwell (1831-1879), autor, entre outras coisas, das famosas equações do eletromagnetismo clássico. Nesse experimento mental, que produziu muita controvérsia na época, o grande físico escocês afirmou que, se existisse um ser capaz de conhecer a velocidade individual de cada molécula de um gás e atuar sobre ela em escala microscópica, ele poderia separar essas moléculas em dois recipientes. De um lado, colocaria as moléculas mais velozes, criando um compartimento quente. Do outro, colocaria as moléculas mais lentas, criando um compartimento frio. Dessa forma, o gás, inicialmente em equilíbrio térmico devido à mistura de moléculas rápidas e lentas, evoluiria para um estado diferenciado, portanto, de menor entropia.

A ideia de Maxwell com esse experimento mental era provar que a segunda lei da termodinâmica tinha um caráter meramente estatístico.

“O ser proposto por ele, capaz de intervir no mundo material em escala molecular ou atômica, ficou conhecido como ‘demônio de Maxwell’. Era uma figura fictícia, que Maxwell inventou para apresentar seu ponto de vista. Mas, hoje, somos efetivamente capazes de atuar nessas escalas e até em escalas menores, modificando as expectativas usuais”, disse Serra.

O experimento realizado por Serra e colaboradores, que motivou o artigo agora publicado, é prova disso. O estudo não reproduziu o experimento mental de Maxwell, é claro. Mas produziu um resultado análogo.

“Quando falamos em informação, não estamos nos referindo a algo imponderável. A informação precisa de um substrato físico, de uma memória. Hoje, para apagar um bit de memória de um pendrive é preciso gastar 10 mil vezes uma quantidade mínima de energia constituída pela Constante de Boltzmann vezes a temperatura absoluta. Esse mínimo de energia necessária para apagar informação é conhecido como Princípio de Landauer e, por isso, apagar informação gera calor. Aquecimento é o que mais consome a bateria dos notebooks”, disse Serra.

O que os pesquisadores observaram foi que a informação presente nas correlações quânticas pode ser usada para produzir uma tarefa que, no caso, foi transferir calor de um objeto mais frio para outro mais quente, sem consumo de energia externa.

“Podemos quantificar a correlação de dois sistemas por meio de bits. Conexões entre a mecânica quântica e a teoria da informação estão criando hoje o que a comunidade científica já denominou como ciência da informação quântica. Do ponto de vista prático, o efeito estudado pode vir a ser empregado para resfriar parte de um processador de um computador quântico no futuro.”

Essas ideias podem ser mais bem exploradas no artigo agora publicado. O estudo teve uma trajetória curiosa, sintomática dos novos tempos vividos pela comunicação científica. Antes de passar por todos os trâmites editoriais e ser oficialmente publicado em Nature Communications, seus autores o postaram na plataforma digital arXiv. Mantida pela Cornell University, nos Estados Unidos, essa plataforma de acesso aberto tem sido cada vez mais usada pela comunidade científica, especialmente na área de Física, para agilizar a troca de informações. E também para assegurar a primazia autoral dos experimentos citados.

A postagem dos cientistas brasileiros teve grande repercussão após publicação na arXiv. Reportagens a respeito foram publicadas em The Times, Newsweek, Science News, MIT Technology Review, Quanta Magazine e outros periódicos.

A íntegra do artigo Reversing the direction of heat flow using quantum correlations, de Kaonan Micadei, John P. S. Peterson, Alexandre M. Souza, Roberto S. Sarthour, Ivan S. Oliveira, Gabriel T. Landi, Tiago B. Batalhão, Roberto M. Serra e Eric Lutz, pode ser acessada em www.nature.com/articles/s41467-019-10333-7.

 

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.