De acordo com a teoria da Relatividade Geral, desenvolvida pelo físico Albert Einstein, pelo matemático David Hilbert e por muitos outros cientistas, a geometria do espaço-tempo (isto é, a estrutura matemática que descreve o espaço e o tempo em que vivemos) depende da distribuição de matéria ao seu redor. Diversas previsões da Relatividade Geral já foram comprovadas experimentalmente. Por exemplo, o fato de o tempo passar mais lentamente no topo de um prédio alto do que em seu andar térreo foi medido por Pound e Rebka em 1959 em uma torre da Universidade de Harvard. Já a deflexão da luz ao passar perto do Sol foi medida por expedições inglesas que foram à Sobral (Ceará) e à ilha de Príncipe (África) durante o eclipse solar que acabou de completar 100 anos em 29 de maio próximo passado. Apesar dessas observações desafiarem o senso comum, talvez a previsão mais surpreendente da Relatividade Geral seja outra: a existência de regiões extremamente densas, denominadas buracos negros, que aprisionam todo e qualquer tipo de partícula e radiação que ali se encontram. Em outras palavras, a ação da gravidade é tão intensa em um buraco negro que nada, nem mesmo a luz, consegue escapar de seu interior.
Como o interior do buraco negro é completamente invisível ao mundo externo, o melhor que se pode fazer é tentar observar a região imediatamente externa a ele. E foi justamente isso que recentemente uma rede global de radiotelescópios, chamada Telescópio do Horizonte de Eventos (Event Horizon Telescope, ou EHT), conseguiu fazer pela primeira vez. Os resultados anunciados pelo EHT, e publicados em seis artigos na revista científica The Astrophysical Journal Letters [1-6], são muito importantes porque representam a primeira evidência direta da existência do horizonte de eventos de um buraco negro, a fronteira que separa seu interior do mundo externo.
Já foram identificados no Universo diversos objetos supermassivos e extremamente compactos. Apesar de todas as evidências indicarem se tratar de buracos negros, outras interpretações acerca da natureza de tais objetos também são possíveis e, por isso, eles são denominados candidatos a buracos negros. Um exemplo de candidato a buraco negro é o objeto supermassivo e compacto localizado no centro da galáxia elíptica supergigante Messier 87 (abreviada M87), que foi descoberto em 1978 após o estudo de trajetórias de estrelas que indicaram a presença de um buraco negro central com aproximadamente 5 bilhões de massas solares (análises mais atuais da dinâmica estelar indicam 6,6 bilhões de massas solares). A intensa atração gravitacional do objeto central compacto em M87 atrai gás e poeira, de maneira que a matéria dos arredores se instala em um disco orbital geometricamente espesso (denominado disco de acréscimo ou, também, disco de acreção), no qual o plasma se movimenta em velocidades extremas e se torna incandescente. O objeto central em M87 ejeta matéria com velocidades próximas à velocidade da luz na forma de um jato muito estreito que alcança em torno de 5.000 anos-luz de distância. Em 1993, o telescópio espacial Hubble conseguiu medir a velocidade de rotação do gás no disco de acréscimo e indicou a existência de um buraco negro central com 2,4 bilhões de massas solares (dados mais recentes apontam 3,5 bilhões de massas solares). Em abril de 2017, o Telescópio do Horizonte de Eventos observou durante 4 dias o objeto central de M87. Durante quase dois anos a imensa quantidade de dados obtidos foi analisada com o intuito de se obter uma imagem da vizinhança do horizonte de eventos do buraco negro. Os resultados da primeira observação direta da sombra de um buraco negro foram anunciados no dia 10 de abril de 2019 (Figura 1). Comparações da imagem obtida com simulações computacionais indicam que o objeto central possui uma massa equivalente a 6,5 bilhões de massas solares, levando à conclusão de que o cálculo da massa central a partir da dinâmica estelar é mais preciso do que a partir da dinâmica dos gases no disco de acréscimo.
Como podemos interpretar a imagem obtida pelo EHT, que revela um anel assimétrico brilhante em torno de uma região mais escura? A parte escura central é a sombra do buraco negro: raios de luz que partem dessa região nunca conseguem chegar aos telescópios na Terra. O anel brilhante, por sua vez, corresponde aos raios de luz produzidos pelo material incandescente que compõe o disco de acréscimo do buraco negro. É impossível deixar de notar que a parte inferior do anel aparece mais brilhante do que o resto. Isso se deve ao fato de que a matéria que gira em torno do buraco negro se movimenta em nossa direção na parte inferior e se afasta de nós na parte superior. Na parte do anel onde a matéria se move em nossa direção, um efeito denominado colimação relativística (relativistic beaming) aumenta a quantidade de luz em nossa direção, fazendo com que essa região apareça mais brilhante.
A imagem da sombra de um buraco negro depende de vários fatores, como, por exemplo, a velocidade de rotação do buraco negro. Outro fator importante é o ângulo que o plano do disco de acréscimo faz com a linha de visão do buraco negro à Terra. No caso de M87, assumindo a hipótese de que o eixo de rotação do buraco negro coincide com a direção do jato, esse ângulo é de 73 graus. A fim de compreender as implicações físicas das observações, a equipe do EHT comparou os dados observados com uma enorme biblioteca de imagens teóricas obtidas a partir de simulações computacionais do movimento de um plasma em torno de um buraco negro; mais tecnicamente, simulações de magneto-hidrodinâmica no contexto da Relatividade Geral (General Relativistic Magnetohydrodynamics, GRMHD). Na figura 3 (painel central), é apresentado um exemplo de simulação GRMHD de um buraco negro que corresponderia à imagem obtida por um telescópio de resolução infinita. Levando em conta as limitações técnicas de um telescópio real, porém, a imagem obtida através de simulações GRMHD pode ter sua resolução reduzida para que se obtenha uma previsão mais realista do que é observado pelo EHT. As semelhanças entre essa previsão que leva em conta as condições de observação do EHT (painel direito da figura 3) e as imagens reais observadas (painel esquerdo da figura 3) são notáveis. No entanto, é preciso salientar que, embora a coincidência da simulação apresentada com a imagem observada seja memorável, é possível obter outras simulações GRMHD igualmente boas, mas que correspondem a cenários físicos radicalmente diferentes entre si. Isso mostra que, por enquanto, há várias maneiras diferentes de explicar o que está acontecendo em torno do buraco negro em M87. Todas elas, porém, concordam nos seguintes aspectos:
1. As imagens do objeto detectado são compatíveis com as imagens previstas para um buraco negro que se comporta de acordo com o previsto pela Relatividade Geral (tecnicamente, um buraco negro de Kerr).
2. Fica descartada a possibilidade de que esse buraco negro seja não-rotante, já que isso entraria em conflito com a potência observada do jato.
3) A análise do EHT mostra que o jato
é alimentado pela extração de energia de rotação do buraco negro através de um mecanismo similar ao proposto em 1977 pelos astrofísicos R. D. Blandford e R. L. Znajek.
Qual a diferença entre o EHT e outros telescópios? Para compreender a grandiosidade do feito realizado pelo EHT, imagine tentar enxergar um limão (com aproximadamente 5 cm de diâmetro) na superfície da Lua (a uma distância aproximada de 400.000 km da Terra). A razão entre o diâmetro do objeto e a distância entre o observador é denominada diâmetro angular e corresponde ao ângulo máximo formado pelos raios de luz que partem do objeto e chegam ao observador. No caso do limão e da Lua, o diâmetro angular é aproximadamente 30 micro segundos de arco (que equivale, mais ou menos, a um bilionésimo de um ângulo de 10 graus). Já o buraco negro central em M87, que tem dimensão aproximada de 0,01 anos-luz e está localizado a aproximadamente 50 milhões M87 é equivalente a enxergar um limão na superfície da Lua.
A capacidade de um observador distinguir detalhes em um objeto com um dado diâmetro angular é denominada resolução angular. A resolução angular é basicamente dada pela razão entre o comprimento de onda da luz captada pelo observador e o diâmetro de abertura da sua lente. A resolução angular do olho humano, por exemplo, é algo em torno de 60 segundos de arco (ou seja, 0,02 graus). A olho nu, portanto, conseguimos enxergar objetos que tem pelo menos 0,02 graus de diâmetro angular. Para visualizar diâmetros angulares menores do que isso precisamos utilizar, por exemplo, um telescópio que nos permita diminuir o comprimento de onda da luz observada e/ou aumentar o tamanho da lente. Ao utilizar não apenas um telescópio, mas um conjunto deles, podemos aumentar significativamente nossa resolução angular. É como se tivéssemos, efetivamente, um grande telescópio de tamanho equivalente à distância entre os telescópios originais, chamada de comprimento de base. É justamente essa a ideia por trás do EHT, que utiliza radiotelescópios espalhados por várias partes do mundo (Polo Sul, Chile, Estados Unidos, Espanha, Havaí). A técnica utilizada é denominada interferometria de base muito longa (Very-Long-Baseline Interferometry, ou VLBI). No caso do EHT, são utilizadas ondas de rádio com comprimento de onda de 1,3 milímetros. O comprimento de base máximo é quase 11.000 km, o que corresponde a uma resolução angular de aproximadamente 25 micro segundos de arco, permitindo, assim, a observação da sombra do horizonte de eventos do buraco negro central em M87.
Quais os próximos passos? O projeto EHT tem ainda um enorme trabalho pela frente. Em breve devem ser divulgados os resultados da análise dos dados do buraco negro supermassivo localizado no coração de nossa galáxia, a Via Láctea. Esse objeto, conhecido como Sagitário A*, possui 4,3 milhões de massas solares e fica a cerca de 26.000 anos-luz da Terra. Apesar de estar mais próximo da Terra e ser muito menor do que o buraco negro central na galáxia M87, Sagitário A* possui uma resolução angular muito semelhante ao buraco negro em M87. No entanto, o fluxo de luz que emerge de Sagitário A* é mais variável em escalas de tempo curtas do que o fluxo de M87 e, portanto, é mais difícil obter uma imagem do seu horizonte de eventos a partir dos dados coletados. Em 2018, o projeto EHT observou novamente os buracos negros em M87 e Sagitário durante uma semana, com resolução ainda maior, mas a análise desses dados ainda não foi finalizada. Além disso, o projeto EHT vem incorporando novos radiotelescópios a sua rede global e espera incorporar mais outros no futuro. A partir de 2020 devem ser possíveis observações de ondas de rádio com comprimento de 0,87 milímetros, melhorando ainda mais a resolução e a qualidade das imagens. No longo prazo, existem projetos para colocar antenas no espaço (space VLBI), o que levaria a um aumento dramático na capacidade de visualização da sombra de um buraco negro. Não é exagero afirmar que a observação do buraco negro em M87 pelo EHT inicia uma profunda transformação na investigação de um dos maiores mistérios do nosso universo, devendo levar a avanços extraordinários no futuro próximo.
Referências
[1] First M87 Event Horizon Telescope Results. I. The Shadow of the Supermassive Black Hole; The Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 ApJL 875 L1; https://doi.org/10.3847/2041-8213/ab0ec7
[2] First M87 Event Horizon Telescope Results. II. Array and Instrumentation; The Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 The Astrophysical Journal Letters 875 L2; https://doi.org/10.3847/2041-8213/ab0c96
[3] First M87 Event Horizon Telescope Results. III. Data Processing and Calibration; The Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 The Astrophysical Journal Letters 875 L3; https://doi.org/10.3847/2041-8213/ab0c57
[4] First M87 Event Horizon Telescope Results. IV. Imaging the Central Supermassive Black Hole; The Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 The Astrophysical Journal Letters 875 L4; https://doi.org/10.3847/2041- 8213/ab0e85
[5] First M87 Event Horizon Telescope Results. V. Physical Origin of the Asymmetric RingThe Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 The Astrophysical Journal Letters 875 L5; https://doi.org/10.3847/2041- 8213/ab0f43
[6] First M87 Event Horizon Telescope Results. VI. The Shadow and Mass of the Central Black Hole; The Event Horizon Telescope Collaboration et al. 2019 The Astrophysical Journal Letters 875 L6; https://doi. org/10.3847/2041-8213/ab1141
Prof. Dr. Germán Lugones - Centro de Ciências Naturais e Humanas
Prof. Dr. Maurício Richartz - Centro de Matemática, Computação e Cognição
Prof. Dr. Vilson Zanchin - Centro de Ciências Naturais e Humanas
Texto original publicado em: Pesquisa ABC (PROPES-UFABC)