Grupo brasileiro controla o calor gerado por núcleos atômicos

Trabalho de 1975 do matemático russo Alexander Lerner representa o demônio de Maxwell dentro de um dos recipientes contendo as moléculas de gás que deveria selecionar

A geração aleatória de calor no mundo microscópico é um dos principais obstáculos para o avanço da nanotecnologia. À medida que os nanodispositivos se tornarem cada vez menores e mais complexos, feitos com peças de tamanho comparável ao de moléculas ou até mesmo de átomos, eles terão risco maior de gerar perigosas flutuações quânticas durante o seu funcionamento. Essas flutuações são variações abruptas e imprevisíveis de energia, regidas pelas leis probabilísticas da mecânica quântica, com potencial de danificar os nanomecanismos. Um grupo de físicos brasileiros liderado por Roberto Serra, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), apresentou em um artigo publicado no início de dezembro na Physical Review Letters uma técnica capaz de atenuar a produção dessas flutuações de calor em nível subatômico.

As flutuações de energia e calor microscópicas devem prejudicar as nanomáquinas de maneira parecida com a que o aquecimento excessivo e descontrolado pode danificar um motor macroscópico convencional, como o de um carro. Durante a Revolução Industrial, uma das motivações dos cientistas do século XIX para desenvolver a termodinâmica clássica – área da física que estabeleceu como a energia na forma de calor é convertida em energia mecânica e vice-versa – foi entender o funcionamento de válvulas de pressão e refrigeradores, dispositivos que tornaram o funcionamento dos motores a vapor e de combustão interna mais seguros e eficientes. Antecipando avanços na nanotecnologia, Serra e seus colegas fazem parte de uma comunidade de físicos que vem desenvolvendo uma teoria mais geral e detalhada da termodinâmica, a chamada termodinâmica quântica fora do equilíbrio, que poderá garantir o funcionamento eficiente de dispositivos nas escalas molecular e atômica, na qual os efeitos quânticos estão presentes.

Para desenvolver uma nova técnica de controle, Serra e seus colegas se inspiraram no “demônio de Maxwell”, um ser fantástico imaginado pelo físico e matemático escocês James Clerk Maxwell (1831-1879). Maxwell foi um dos primeiros a entender que a temperatura de certo volume de gás depende da velocidade média com que se movimentam as moléculas que o compõem. Quanto mais velozes são suas moléculas, mais quente é o gás. Em uma carta de 1867 ao colega Peter Tait, Maxwell imaginou um ser microscópico e inteligente, capaz de medir e registrar as velocidades de todas as moléculas do gás. No experimento mental, o ser controlava uma torneira separando dois recipientes iguais, ambos cheios de um gás mantido à mesma temperatura. Abrindo e fechando a torneira rapidamente, a criatura separaria as moléculas de gás, deixando as menos velozes que a média – e, portanto, mais frias – em um dos recipientes e as mais ligeiras no outro.

Em artigo publicado em 1955 no American Journal of Physics, a figura imaginária controla o fluxo das moléculas de gás a partir do exterior dos recipientes

Darling & Hulburt, American Journal of Physics, 23-7, 1955 Em artigo publicado em 1955 no American Journal of Physics, a figura imaginária controla o fluxo das moléculas de gás a partir do exterior dos recipientesDarling & Hulburt, American Journal of Physics, 23-7, 1955

Pecado termodinâmico
Em artigo na Nature em 1874, o físico irlandês William Thomson, mais conhecido como Lorde Kelvin, batizou o ser inteligente de demônio, para enfatizar que a criatura, ao esquentar o gás de um recipiente ao mesmo tempo que esfriava o gás do outro, cometia o pecado de violar a segunda lei da termodinâmica.

Essa lei afirma que um corpo isolado, ou um conjunto de corpos isolados, possui uma propriedade chamada entropia, que sempre tende a aumentar com o tempo. Para um cojunto de partículas, a entropia é o número possível de arranjos entre todas elas, em uma dada situação.

Ao ordenar as moléculas de gás por sua velocidade, o demônio estaria diminuindo o número de arranjos possíveis do sistema, reduzindo, portanto, a sua entropia. Após o artigo de Thomson, ficou entre os físicos a dúvida: seria o demônio mera fantasia ou o experimento mental apontaria uma falha no entendimento das leis da termodinâmica?

Mais de um século depois, em 1982, o físico norte-americano Charles Bennett, então pesquisador na empresa IBM, compreendeu que, para funcionar na prática, o demônio de Maxwell precisaria gravar a informação da velocidade das moléculas do gás em um substrato físico, como os bits da memória de um computador. Acontece que escrever e apagar dados em uma memória é uma tarefa impossível de se realizar sem gerar calor, algo descoberto anos antes por Rolf Landauer, outro pesquisador da IBM. E gerar calor sempre aumenta a entropia.

Quando se avalia o aumento e a redução de calor nas duas etapas desse processo, verifica-se que a segunda lei da termodinâmica nunca é violada: o demônio pode diminuir a entropia no interior dos recipientes do gás ao selecionar as moléculas, mas o calor gerado para registrar a velocidade delas na memória aumenta muito mais a entropia do lado de fora dos recipientes. Os cálculos mostraram que a criatura sobrenatural de Maxwell obedecia a todas as leis da física e que sua função poderia ser realizada, na prática, por um mecanismo automático, controlado pela memória de um computador.

Desde então, pesquisadores já criaram em laboratório mecanismos semelhantes ao imaginado por Maxwell, cada vez menores. O trabalho atual de Serra e seus colaboradores é o primeiro a projetar um demônio de Maxwell completamente quântico. Em um laboratório do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, os pesquisadores dispararam um pulso de ondas eletromagnéticas contra uma solução de moléculas de clorofórmio – cada uma delas é formada por um átomo de carbono, um de hidrogênio e três de cloro (CHCl3). O pulso era ajustado para provocar flutuações quânticas na energia dos núcleos dos átomos de carbono das moléculas. Simultaneamente, os físicos dispararam ondas eletromagnéticas adicionais com o objetivo de ajustar a interação entre o núcleo de carbono de cada molécula com o seu núcleo de hidrogênio.

Os pesquisadores conseguiram usar o núcleo de hidrogênio como um demônio de Maxwell que armazenava informação sobre o estado do núcleo de carbono. Dependendo do nível de energia do núcleo de carbono, o núcleo de hidrogênio atuava e restringia as flutuações energéticas do vizinho. A ação dos núcleos de hidrogênio fez com que as flutuações de energia dos núcleos de carbono acontecessem de maneira a produzir o mínimo de entropia possível. “Projetamos esse processo por meio de uma equação matemática que deduzimos, relacionando informação, entropia e energia”, diz Serra. “A equação é bem geral e poderá ser aplicada a qualquer sistema quântico, como elétrons e fótons, não apenas a núcleos atômicos.”

“É um trabalho empolgante”, comenta Vlatko Vedral, físico da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que participou de um experimento realizado em 2016 no qual se usaram feixes de laser para produzir um demônio de Maxwell. “Eles testaram uma fórmula que descreve a produção de entropia em sistemas quânticos em condições genéricas. Ainda não está claro por que a entropia do Universo precisa sempre aumentar e essa abordagem pode ajudar a entender as origens da segunda lei da termodinâmica.”

Projeto
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica (nº 2008/57856-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Amir Caldeira (Unicamp); Investimento R$ 1.977,654,30 (para todo o projeto).

Artigo científico
CAMATI, P. A. et al. Experimental rectification of entropy production by Maxwell’s demon in a quantum system. Physical Review Letters. v. 117. p. 240502. 5 dez. 2016.

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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.