Pesquisa FAPESP | Baseada no uso de ferramentas da teoria quântica para a investigação de fenômenos envolvendo organismos vivos, a biologia quântica vem se constituindo em um campo de pesquisa essencialmente interdisciplinar. A sustentação de seus estudos se dá, sobretudo, pela colaboração estabelecida entre profissionais da biologia, química e física, tendo a mecânica quântica e a química teórica como elementos centrais de sua produção científica.

“A tentativa de entender e controlar aspectos estruturais de sistemas biológicos tem chamado a atenção de pesquisadores para o estudo de fenômenos quânticos, ou seja, de eventos que não podem ser explicados pela física clássica do mundo macroscópico”, explica Fernando Semião, do Laboratório de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde, além da biologia quântica, também são realizados estudos sobre informação quântica pura, termodinâmica quântica e pesquisa experimental em óptica quântica.

No Brasil, estudantes de pós-graduação que decidem realizar pesquisas nessa área, no entanto, não dispõem de caminhos institucionalizados, o que requer mais empenho para a obtenção, geralmente de forma autônoma, desses conhecimentos. “Mesmo sendo um campo de pesquisa promissor, aqui ainda há poucas instituições que desenvolvem esse tipo de estudo”, avalia Semião.

As primeiras menções à biologia quântica remetem a meados do século XX. No livro O que é a vida? O aspecto físico da célula viva (Unesp, 1997), publicado originalmente em 1944, do físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961), são apresentados conceitos importantes para a constituição da biologia quântica como campo de estudos, fundamentado principalmente na complexidade da matéria viva.“Os pesquisadores da época, no entanto, não estavam preparados para enfrentar esse desafio”, afirma Carlos Alberto dos Santos, do Instituto de Física da Universidade Federal de Alagoas (IF-Ufal). Ao expor possibilidades de estudo da termodinâmica de sistemas biológicos, a obra aos poucos passou a mobilizar físicos e biólogos.

Rota de aproximação
• Comece aprimorando seu conhecimento em funções matemáticas
• Procure programas de pós-graduação em áreas da mecânica quântica ou química teórica
• Troque informações com pesquisadores de áreas relacionadas, como biologia, física e química
• Acompanhe estudos publicados por centros internacionais especializados no assunto
• Participe de congressos sobre o tema

Na base Web of Science, o primeiro trabalho com as palavras quantum biology remonta ao ano de 1956. A produção seguiria pequena até o início deste século. A virada aconteceu em 2007, com a publicação do artigo “Evidence for wavelike energy transfer through quantum coherence in photosynthetic systems”, na Nature. Nele, um grupo de pesquisadores liderados pelo químico britânico Graham Fleming, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, obteve evidências de que macromoléculas envolvidas na fotossíntese apresentam oscilações eletrônicas passíveis de descrição apenas pela física quântica. A partir daí o número de artigos científicos disparou. “É certo que o campo de estudos começa a se firmar a partir desse período”, completa Santos.

Desde a divulgação dos estudos do grupo de Fleming, a fotossíntese se tornou o primeiro fenômeno biológico a ser considerado resultado legítimo da mecânica quântica. O fenômeno é descrito como um processo biológico em que certas bactérias, algas e plantas obtêm energia, a partir dos fótons, com absorção de energia, que é transportada por diversas proteínas e transformada em energia química. “O transporte dessa energia acontece por meio de um efeito intitulado coerência quântica”, explica Guilherme Menegon Arantes, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), que emprega simulação computacional para investigar fenômenos quânticos envolvendo biomoléculas. A eficiência da conversão de energia solar em energia química no processo da fotossíntese é algo que sempre intrigou pesquisadores. Até então, os efeitos quânticos eram caracterizados como fenômenos ultrarrápidos que ocorrem apenas em ambientes controlados e com temperaturas muito baixas.

Interface e colaboração
A biologia quântica tem ganhado importância no campo da biomedicina. “Entender melhor como ocorrem os fenômenos quânticos pode impactar e influenciar o entendimento que temos sobre mecanismos de doenças”, considera Francisco Laurindo, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da USP (InCor), que vê a possibilidade, no momento ainda teórica, de integração de conhecimentos entre biologia quântica e biologia redox, área de estudo já consolidada e dedicada ao estudo de processos biológicos que envolvem reações de troca de elétrons em biomoléculas em seres vivos. “Nossas investigações em biomedicina redox têm se concentrado em estudar como células vasculares respondem a diferentes tipos de lesão e como os processos de oxirredução, ou seja, de transferência de elétrons, podem modular esses processos”, explica Laurindo.

Dentre as hipóteses trazidas pelos preceitos da biologia quântica está a de que a alteração de spin – uma propriedade intrínseca das partículas microscópicas como elétrons, prótons e átomos – pode se relacionar com processos redox. Laurindo destaca duas hipóteses advindas dessa aproximação. A primeira está relacionada a processos celulares usuais que geram minicampos magnéticos dentro da célula e podem afetar sua reação a certos estímulos. Nesse caso, o fenômeno quântico seria um mediador de respostas celulares. A segunda seria a de que campos magnéticos externos como os gerados por antenas de telefonia, telefones celulares e televisão, dentre outros, poderiam interferir em respostas adaptativas intracelulares.

Trilha de pesquisa
Quando decidiu realizar estudos no campo da biologia quântica pelo Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IF-UFRGS), a pesquisadora Nicole De March precisou convencer seus orientadores sobre a relevância de sua pesquisa. “Apesar de eu ser da área de física, para avançar na pesquisa do mestrado e do doutorado tive de entender conceitos da biologia”, explica. As descobertas decorrentes dos avanços em biologia quântica poderão, no futuro, aumentar sua proximidade com os campos da física e química e o consequente estabelecimento de disciplinas que contemplem mais especificamente essa temática. “O estudo dos fenômenos quânticos que surgem como ponto de ligação entre essas áreas do conhecimento pode transformar os currículos de graduação”, observa Sandra Denise Prado, do IF-UFRGS.

Instituições europeias e dos Estados Unidos já oferecem disciplinas que favorecem o aprofundamento nesse campo. Na Universidade de Surrey, na Inglaterra, por exemplo, um programa de pós-graduação do Leverhulme Quantum Biology Doctoral Training Centre (QB-DTC) permite a formação em temas como magnetorrecepção, biofotônica quântica, tunelamento quântico em DNA, efeitos quânticos da fotossíntese e decoerência e ruídos em sistemas biológicos. No Center for Quantum Bio-Sciences do Instituto de Física Teórica da Universidade de Ulm, na Alemanha, estudos de biologia quântica envolvem fotossíntese e transporte de elétrons e estão entrelaçados com pesquisas sobre tecnologias quânticas e ciência da informação quântica, tais como mecânica estatística quântica e processamento de sinais quânticos.

Em sua 12ª edição, a conferência intitulada Quantum Effects in Biological Systems Workshops (QuEBS) congrega anualmente interessados em estudos de fenômenos da mecânica quântica em sistemas biológicos de áreas como física, química, biologia, ciência dos materiais e ciência da informação quântica. Prevista para ocorrer em setembro, na Grécia, a edição deste ano teve de ser reagendada em decorrência da pandemia da Covid-19. Ao reunir em média uma centena de pesquisadores em torno do assunto, a biologia quântica evidencia que, embora pequena, vem se firmando como campo de estudos emergente.

Artigo científico
ENGEL, G. e CALHOUN, T. et al. Evidence for wavelike energy transfer through quantum coherence in photosynthetic systems. Nature. v. 446, n. 7137, p. 782-6. 2007.

 

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.